quarta-feira, 6 de julho de 2011

A mulher não-mulher.


Calça social. Camisa social. Gravata. Paletó. Sapato. Cinco ingredientes fundamentais ao meu típico dia de trabalho. Saio de casa muito bem vestido, com o nariz lá em cima e a alma lá embaixo. "Mais um burguês", deve ser o cumprimento pensante da mulher da limpeza do condomínio onde moro, devolvendo meu tradicional "bom dia". E a minha suposição do que seria o pensamento dela não está errada. Compro roupas legais, como em restaurantes bons, saio aos fins de semana. Sou um burguês. Não posso negar. Já estou inserido, e sempre estive, no mundo capitalista-consumista-ista-ista-ista.

O fato é que ainda não estou acostumado com a ideia de que nem todos desfrutam de uma vida economicamente "tranquila" como a minha - excetuando-se as contas a pagar, claro. E por isso, sou pego de surpresas diariamente.

O local onde trabalho, em frente à estação de metrô Santa Cecília, é repleto de moradores de rua. Lembro-me perfeitamente do rosto de oito que sempre estão lá - tem mais, mas me recordo desses. Maltrapilhos, sujos pela vulgaridade e pela indiferença com que são tratados. Exprimem no rosto uma felicidade ensandecidamente sofrida. Riem de tudo, esbravejam por nada. Nunca choram.

Dentre os oito de que me lembro, uma única mulher. Os dentes podres brotam de sua boca sem risos. Seus cabelos maltratados emergem de um corpo forte, vacinado contra qualquer tipo de ameaça ou ação desconsertante. Cicatrizes pelo corpo de uma vida sem vida. Uma mulher não-mulher. Uma Vênus para os mendigos restantes. Uma mendiga restante para todos os outros.

Certa vez eu, todo cheio de mim por trás do paletó, fumava meu tradicional cigarro na praça em frente ao local do meu trabalho. Era dez horas da manhã, a temperatura abaixo dos quinze graus. Mesmo com o paletó quentinho, o frio eriçava os pelos do meu corpo. A mulher não-mulher passou por mim. “Me dá um cigarro?”, sua voz rouca me lançou. Meu tradicional “não tenho” a fez ir embora. Não tão embora. A dez metros de mim, encostada no muro que separa uma igreja católica do mundo profano, ela, sem pudores – e pra quê pudores? – abaixou suas calças e urinou deliberadamente. A urina corria ao chão como uma faca correu à minha soberba.

Ela não sentia frio? Nem constrangimento? Não. O problema é justamente este. Ela já não sente.

Meu paletó não teria me permitido urinar na frente dos outros no meio de uma praça. Agarrei-me a ele como um guerreiro se agarra a seu escudo na hora de combate. Sentia-me, com ele, protegido. Como se ele fosse uma vacina antiviral, e o vírus, a atitude da  mulher não-mulher. Por ter sentido isso, por ter agido assim, me envergonho. Prejulguei aquela criatura como criatura que é. Porém, por trás disso, há um ser humano. Por trás da criatura que urina ao chão na frente de outrem, há um ser humano. Da forma mais animalesca possível mas, mesmo assim, humana.

Não posso mais esperar que todos urinem em vasos sanitários. Não quero ter a doce ilusão de que, para defecar, todos se sentam a uma tampa arredondada com um buraco no meio. Pessoas cagam e mijam no chão, na praça, na rua. É uma triste realidade com a qual devo aprender a lidar. Meu paletó não pode ter uma sujeirinha, mas a mendiga maltrapilha pode ter todo um corpo sujo pela vida? Não quero admitir. Não consigo compreender a maldade do mundo contra aquela criatura. O mundo fez de mim um homem e, dela, um animal?

Não quero mais meu paletó. Não quero mais minha armadura contra as verdades que circulam por mim. Poderia ser eu, ali, na situação mais íntima e desconfortante possível. Não vou usar meu paletó como uma desculpa de que estou imune a situações como esta. Agora, tenho nojo dele, e não dela, em uma terrível sensação de arrependimento por um dia ter julgado um objeto mais importante que um ser humano.

5 comentários:

  1. Mauuuuu! Vc escreve muito bem. E sem palavras pelo texto. Tanto pela escrita, quanto pela realidade. Infelizmente é isso... A maioria continua exaltando o luxo e a propriedade privada, esquece que caixão não tem gaveta e que dessa passagem, a aprendizagem é a única bagagem levada...

    Luiza.

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  2. Não me escondo atrás de um paletó, mas de outros mil tipos de roupas. Larguei, também. Belo texto, querido!!!

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  3. A mulher não-mulher não tem mais diginidade, perdeu a identidade,
    perdeu a sanidade.
    Qual será a fuga dela?
    Também me colo em seu lugar...

    Larissa Berbel *não sou anônima!

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  4. É verdade Mau... Quantas vezes reclamamos, quantas vezes estamos insatisfeitos como se no mundo ninguem tivesse problemas maiores que os nossos. As vezes me pego sozinha reclamando de algo, sempre pedindo mais e mais... E me deparo com aquelas pessoas diante daquela situação jogando e brincando entre eles, quantas vezes recebo um BOM DIA dessas pessoas em uma situação tão dificil. Sendo que com uma vida tão boa que temos as vezes nos questionamos. O que a de bom hoje?. Me envergonha dessa realidade cruel de todas essas pessoas e me envergonho de minha insatisfação diante de uma vida maravilhosa, me envergonho de todos nós que diante de tudo isso não tomamos uma atitude e fico triste em não conseguir mudar a realidade de todas essas pessoas sozinha. Adorei seu blog. Parabens! Bjaum Manú

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  5. A coluna que (quase) ninguém lê! Você sabe do que eu falo! rs

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