sábado, 10 de setembro de 2011

O chá de bebê

Era sábado, 9h30, e eu estava com sono. Havia dormido em torno de 4 horas, durante as quais acordei várias vezes por conta do frio. O peso sobre meus olhos não impediu minhas pernas de se levantarem e marcharem rumo à estação de metrô Vila Madalena. Cambaleante, seguia na calçada, em lenta marcha, ao meu verdadeiro objetivo: a tranquilidade de minha casa. Mas, como todo filósofo de bar sabe, para se alcançar a tranquilidade deve-se passar por derradeiros maremotos do cotidiano que embaralham nossa consciência como um verdadeiro jogo de cartas. Truco! Seis, ladrão!

Eu estava ainda de jejum, então comprei uma água de coco, dessas de caixinha, na padaria antes mesmo de entrar no metrô. Um cigarro fez companhia ao ato de beber. E embarquei. A primeira meta era chegar à estação de metrô Terminal Sacomã para, posteriormente, seguir o meu trajeto. A viagem de metrô, que durou cerca de 25 minutos, foi bastante agradável. Rachel de Queiroz me fez crer em discos voadores e em extraterrestres e Graciliano Ramos me provou, por a mais b, que milagres existem. Nada mais natural, pois para me fazer acreditar em seres extraterrestres foi necessário um milagre gracilianesco!

Ao desembarcar no Terminal Sacomã, percebi que o néctar das crônicas lidas me foi benéfico e verdadeiro estimulante. Por mais que as olheiras anunciassem minha necessidade de uma cama, eu estava atento a (quase) tudo que ocorria à minha volta. Maldita ilusão de que a atenção aos detalhes do cotidiano é virtude! Pois, ao continuar meu caminho e embarcar no ônibus que me levaria ao ponto final de meu anseio, começou o maremoto. E a falta de atenção teria transformado o maremoto em apenas uma "marolinha".

Sentei-me à desconfortável poltrona do 5034-10 Vila Liviero. Em alto e bom tom, grito: ônibus dos infernos! O estofamento das poltronas é, por vezes, rasgado e riscado; o chão está sempre sujo pela falta de cidadania alheia; os passageiros escutam música sem a utilização de fones de ouvido e conversam (ok, gritam) como se estivessem em suas próprias casas; o motorista é, em 99% dos casos, apressado e não se importa com o bem estar dos passageiros. Nessa viagem, minha atenção pode constatar que, além de não se importar com os passageiros, o motorista não dá muito valor aos pedestres.

O princípio do maremoto.

É paradoxalmente incrível como o sono nos desperta. Porque sabemos que, em qualquer vacilo, os cílios superiores dão um jeito de se encontrarem com os inferiores. E aí, meu amigo, não há quem os separe. Portanto, pretendi permanecê-los bem distantes uns dos outros. Não havia nenhum obstáculo à frente da minha vista, afinal eu estava sentado na poltrona do lado direito à do motorista. O grande parabrisa do ônibus também facilitou minha visualização das ruas pelas quais circulávamos e dos pedestres pelos quais passávamos. Minha atenção, além de estar em plena forma, ganhou amigos que a deixaram 100% operante.

Atrás de mim, duas senhoras. Ainda nos seus 40 e tantos anos, mas nomeio-as de "senhoras" pela aparência maltratada e literalmente envelhecida. Conversavam sobre a dureza do trabalho diário e, à afirmativa de uma delas "mas o meu trabalho é mais pesado que o seu", a outra tergiversou, e tudo isso ao som de um funk bem escroto do garoto-que-não-conhece-fone-de-ouvidos sentado um pouco mais atrás. Esse seria um modelo bem interessante para o Diabo utilizar na penitência de seus convidados. Portanto, preferi continuar com meus olhos voltados à pista, mesmo que, invariavelmente, minha mente já estivesse confusa com tanta informação que vinha até meus ouvidos.

O motorista estava bem rápido. Por mais que o velocímetro registrasse aproximadamente 50km/h - confesso que desviei meu olhar, um pouco estreito, ao painel do ônibus - a impressão era a de que o ônibus trepidava ao dobro do que estava marcado. O motorista já era velho. Grisalho, gordo, e estava com sono! Era visível em seu rosto um cansaço anormal. E, como eu disse anteriormente, é melhor não juntar os cílios superiores aos inferiores, senão... maremoto! O motorista atropelou um pedestre e minha atenção presenciou o incidente de forma bem crua. Não discutirei aqui se o pedestre se machucou ou se a batida foi muito intensa. O que realmente importa é o chá de bebê!

No ato da pancada, o motorista parou o ônibus e desceu para verificar o estado do atropelado - admirei a atitude do motorista que, embora previsível no que diz respeito a conceitos, na prática sabemos que é raro. Minha atenção teve de se desdobrar. Aspirante à jornalista, fiquei observando da janela o suposto acidentado e o suposto causador do acidente. Mas meus ouvidos, ah! meus ouvidos também estavam bastante atentos. E, para sorte dessa minha pequena arte aqui exposta e azar de meus ouvidos - pobres coitados! -, engoli a seco o testemunho gritado de uma das senhoras que se sentava atrás de mim, referindo-se ao ato do motorista de parar o ônibus e socorrer o acidentado: "Pelo amor de Deus, pra quê parar o ônibus? Ai, meu Jesus, já estou atrasada para um chá de bebê. Anda logo, motorista!"

O motorista andou logo. Em menos de 2 minutos constatou que o acidentado passava bem. Então, voltou ao ônibus e seguiu viagem. O funk continuou a dar tom às trepidações do ônibus. A senhora-que-grita-em-transportes-públicos teve um atraso de menos de 2 minutos (somados aos minutos que ela já estava atrasada) para o seu chá de bebê. O acidente poderia ter atrasado toda uma vida de uma pessoa alheia à vida dela.

Um brinde ao bebê que ganhará vida, um brinde à vida que não teve atrasos, um brinde aos 2 minutos de maremoto da senhora atrasada.